Os efeitos deletérios da Lei Kandir para Minas
Por Por Maria Aparecida Molon e Lucas Espeschit
whatsappfacebooktwitterlinkedin
postado em 24/07/2019 14:44 / atualizado em 24/07/2019 14:44
Com a alegação de incentivar as exportações, melhorar o saldo do balanço de pagamentos e garantir a política cambial de paridade real/dólar, importante âncora do Plano Real, em 1996, o governo federal fez aprovar a Lei Complementar 87/1996 – Lei Kandir, que isentou do ICMS as exportações de produtos primários e semielaborados e autorizou o aproveitamento do crédito do imposto na aquisição de bens do ativo e de uso e consumo.
Era previsível que os estados, cuja economia estava assentada na exportação de produtos primários, oriundos do extrativismo e do agronegócio, acusariam grandes perdas de arrecadação Para compensar tais perdas e garantir a manutenção do nível de receita do ICMS, a LC 87/1996 instituiu o seguro-receita, uma forma acautelar contra prejuízos decorrentes do benefício fiscal. Mas tal medida resultou sempre aquém do valor real devido.
Diante dessa constatação, face à queda de arrecadação, a maioria dos Estados passou a exigir revisão dos critérios de compensação, que resultou na aprovação da LC 102/2000 e, posteriormente, da LC 115/2002. Contudo esses critérios continuaram insuficientes para reparar devidamente as perdas de arrecadação.
Em 2003, com a Emenda Constitucional 42, o benefício de isenção assegurado na Lei Kandir ganhou status de imunidade tributária (art.155, §2º, X, a da CF/88). A edição da Emenda elevou para o plano constitucional o esforço de desoneração das exportações, mas estabeleceu, em contrapartida, no art. 91 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que deveria haver uma compensação adequada pela União aos estados, mediante sua regulamentação por lei complementar.
A despeito da Ação de Inconstitucionalidade por Omissão, – ADO 25/2016, proposta pelo Pará, e na qual, MG, SP, RJ, MA, BA, PR, SE, RO, SC, DF, MT, RN, ES, GO atuam na qualidade de “amicus curiae”, aprovada pelo STF por unanimidade, em 30 de novembro de 2016, até hoje tal lei não foi regulamentada e aprovada pelo Congresso Nacional.
Ao longo dos anos, o privilégio tributário, que concedeu isenção e posterior imunidade a produtos primários e semielaborados, vem representando enorme sangria na arrecadação dos estados de Minas e de seus municípios, pois a maior parte dos itens que compõem a pauta de exportação (perto de 70%) é constituída destes produtos, todos isentos do ICMS.
O impacto para as receitas estaduais advindos da concessão desse benefício tributário era previsível e tem sido denunciado pelos técnicos da Secretaria de Estado de Fazenda de Minas Gerais desde a primeira hora.
Para a União, no entanto, as perdas só aconteceriam nos primeiros anos de vigência da lei, e os bons resultados viriam do incremento da atividade econômica que, certamente, repercutiria na receita tributária. Mas a previsão não se realizou. O benefício tributário produziu efeito contrário, pois estimulou a exportação direta de bens primários e semielaborados e desmontou a indústria de transformação tanto na área da mineração como do agronegócio.
O privilégio tributário da imunidade na exportação suprime recursos relevantes do estado sob o argumento falacioso de que “não se exporta impostos” ou que “tal tributação inibiria a colocação do produto brasileiro no mercado internacional”. Sobre isso, vale destacar insuspeito estudo patrocinado pelo BID, “Fazendo e desfazendo a Lei Kandir”, de autoria do economista Ricardo Varsano (ano), que deixa claro que o Brasil não tem poder de mercado capaz de alterar preços internacionais.
“[…] se os preços internacionais são dados para o exportador, qualquer imposto sobre as exportações reduz o preço líquido recebido pelo exportador, sendo a redução igual ao valor total do imposto sobre o bem. Logo, antes da Lei Kandir, 13% do preço internacional era imposto e o preço para os produtos era somente 87% do preço internacional. Houve, portanto, após a Lei, um aumento de quase 15% no preço para o exportador”.
Ou seja, o maior benefício fiscal heterônomo concedido pela União tem servido tão somente para ampliar as altas taxas de lucro dos exportadores e deixar, no estado, um rastro de destruição, mortes e pobreza. Visando unicamente maximizar seus lucros, as empresas do setor de extração de minério deixaram de adotar técnicas de produção seguras, disponíveis e comuns à atividade extrativista, e amplamente utilizadas em outros países. A revogação deste privilégio tributário, além de medida essencial para equilibrar as finanças do Estado e restaurar o Pacto Federativo, assume nesse contexto, a função pedagógica de construir ambiente mínimo de cidadania e responsabilidade social, no qual direitos e deveres sejam pactuados visando a preservação das nossas riquezas, materiais e humanas.
No período de 1996 a 2018, o total da perda para Minas ultrapassa os R$ 135 bilhões (valores originais corrigidos até 2018, pela Selic Composta, o mesmo índice usado pela União para corrigir a dívida estadual), sendo que 25% desse montante, correspondente a aproximadamente R$ 34 bilhões, é devido aos Municípios, conforme tabela/quadro.
Período | Perda Líquida (Valores Correntes) ¹ | Perda Líquida (Valores Constantes – IGP-DI a Preços de Nov/2016) ² | SELIC Acumulada Índice de correção a Preços de DEZ/2016 ³ | Valor corrigido a Preço de Dez/2016 – SELIC Acumulada |
16/09/96 a 31/12/96 | 61.920.463,42 | 300.556.058,55 | 19,77369075 | 1.224.396.094,52 |
1997 | 522.042.865,94 | 2.402.514.865,11 | 18,54648145 | 9.682.058.328,31 |
1998 | 429.736.179,45 | 1.903.705.361,93 | 14,86241202 | 6.386.916.158,34 |
1999 | 418.824.144,08 | 1.666.706.839,27 | 11,54020036 | 4.833.314.538,58 |
2000 | 467.973.454,11 | 1.636.870.696,14 | 9,188946445 | 4.300.183.007,46 |
2001 | 478.642.318,84 | 1.517.009.516,04 | 7,824872285 | 3.745.315.015,15 |
2002 | 844.047.914,35 | 2.356.847.235,34 | 6,669831591 | 5.629.657.443,88 |
2003 | 1.339.973.139,82 | 3.046.991.020,27 | 5,596761303 | 7.499.509.816,22 |
2004 | 1.787.260.323,96 | 3.714.817.363,23 | 4,537468721 | 8.109.637.815,78 |
2005 | 2.003.589.697,04 | 3.930.028.667,86 | 3,903323391 | 7.820.658.530,19 |
2006 | 2.224.368.564,67 | 4.289.501.607,77 | 3,278731272 | 7.293.106.774,01 |
2007 | 2.520.568.107,15 | 4.631.053.101,15 | 2,849167953 | 7.181.521.875,06 |
2008 | 2.724.899.306,81 | 4.495.234.690,78 | 2,546720998 | 6.939.558.283,43 |
2009 | 3.142.363.971,53 | 5.092.692.166,06 | 2,264126197 | 7.114.708.589,08 |
2010 | 3.856.998.655,43 | 5.921.060.813,31 | 2,059613307 | 7.943.925.756,85 |
2011 | 4.719.258.194,07 | 6.675.228.239,75 | 1,876180749 | 8.854.181.374,40 |
2012 | 4.880.266.598,85 | 6.513.462.964,16 | 1,680851053 | 8.203.001.252,25 |
2013 | 5.507.852.316,12 | 6.929.116.986,25 | 1,549268771 | 8.533.143.587,48 |
2014 | 5.163.994.452,83 | 6.166.670.747,16 | 1,431566782 | 7.392.602.923,36 |
2015 | 5.412.826.635,36 | 6.047.333.509,54 | 1,290812066 | 6.986.941.931,63 |
TOTAL | 48.507.407.303,82 | 79.237.402.449,66 | – | 135.674.339.095,98 |
Fonte: CONFAZ, COTEPE, GT-08 – Quantificação
Notas:
1 Valores calculados pela GT-08 – Quantificação considerando os valores do imposto que deixou de ser cobrado nas exportações de produtos primários e semielaborados, bem como a parcela do ICMS que deixou de ser cobrado nas operações com ativo permanente, descontados dos valores repassados pela União às Unidades da Federação e aos Municípios, a título de ressarcimento de auxílio às exportações
2 Valores corrigidos pelo GT-08 – Quantificação utilizando o índice médio do IGP-DI
3 Índice acumulado do primeiro dia de cada ano (período) até 30.12.2016
4 Índice acumulado anual
5 PERDA LÍQUIDA NÃO COMPENSADA = PERDAS DE ICMS (ESTADOS E MUNICÍPIOS COM A DESONERAÇÃO DE ICMS NAS EXPORTAÇÕES E COM A APROPRIAÇÃO DE CRÉDITOS POR AQUISIÇÕES DESTINADAS AO ATIVO PERMANENTE) MENOS TRANSFERÊNCIAS DA UNIÃO (ESTADOS, MUNICÍPIOS E FUNDEF/FUNDEB A TÍTULO DE “ART. 91 DO ADCT/LEI KANDIR” E DE “AUXÍLIO FINANCEIRO AOS ESTADOS EXPORTADORES”)
Entendemos que a solução da crise está no vetor RECEITA. Os estados precisam de receitas em volume capaz de fazer frente ao déficit, corrente e acumulado, atender as demandas. Por isso, no que se refere a essa injustificada imunidade tributária decorrente da LEI KANDIR, o caminho racional e justo é RESSARCIR as perdas acumuladas ao longo de 23 anos, e REVOGAR tal privilégio tributário.
RESSARCIR, pelo valor real, as perdas causadas aos estados e aos municípios pela concessão desse destrutivo benefício fiscal concedido pela União, principal causa da queda de arrecadação, desindustrialização, redução da capacidade de investimento e aumento do endividamento do Estado.
REVOGAR o benefício fiscal concedido para as exportações de produtos primários e semielaborados, devolvendo a competência tributária aos estados. Tal privilégio heterônomo (típica situação de se fazer cortesia com chapéu alheio) está destruindo a Federação, condicionando e impedindo o desenvolvimento do estado e tem sido responsável por verdadeiros massacres humanos, sociais e ambientais, a exemplo de Brumadinho e Mariana.
No contexto em que se discutem as perdas e o ressarcimento devido pela Lei Kandir, é de se atentar ainda para o anunciado “regime de recuperação fiscal”, que o estado pretende celebrar com a União, nos termos definidos pela LC 159/2017, e alertar para as graves consequências desse “acordo” no presente e para o futuro do estado, justamente na situação em que Minas é credora da União.
É notório que a suspensão do pagamento das parcelas da dívida por um período de três anos, ainda que renovável por mais três, mas com condições mais severas para o seu equacionamento no médio e longo prazos; ainda que somada a cortes de despesas (já extremamente comprimidas), e a precarização em curso no fornecimento de serviços públicos (igualmente bastante constrangidos), não serão suficientes para retomar o equilíbrio da situação fiscal do estado.
Ademais, a Lei Complementar 159/2017 condiciona o Regime de Recuperação Fiscal à privatização de empresas dos setores financeiro, energético, de saneamento e outros. Além de a receita da venda da participação de Minas Gerais nas empresas desses setores não ser suficiente para, nem mesmo, amenizar os valores tidos pela União como devidos pelo estado, temos visto que medidas dessa natureza, adotadas em outros países, se mostraram inadequadas, resultando em serviços mais caros e de pior qualidade. Foi o que se observou nos EUA, França, Alemanha, Reino Unido e Espanha, em que 884 serviços, principalmente de água e energia, foram reestatizados (Caderno de Economia – UOL – 07/03/2019).
Enfim, a crise financeira dos estados decorre, em grande medida, de desequilíbrios impostos pela política econômica da União e que não foram adequadamente enfrentados. Por outro lado, os termos do “regime” definidos na Lei Complementar 159/2017 são autênticas “armadilhas”, cujos custos são imponderáveis, mas com certeza, recairão sobre todos os mineiros.
SOBRE OS AUTORES:
MARIA APARECIDA NETO LACERDA E MELONI é vice-presidente da Febrafite e Diretora Presidente da Affemg.
LUCAS RODRIGUES ESPESCHIT é Auditor Fiscal da Receita Estadual SEF/MG e membro do Conselho de Administração da Affemg.
Belo Horizonte, 16 de julho de 2019.