Por Onofre Alves Batista Júnior
O relator da Comissão Mista Especial sobre Lei Kandir apresentou, no dia 31 de outubro, seu relatório e minuta de projeto para alteração da Lei Complementar 87/1996 (LC 87). Como sabido, a Comissão, instalada em 9 de agosto, tem a missão de propor lei complementar que dê cumprimento aos mandamentos do artigo 91 do ADCT da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88) que determina a necessidade de reposição das perdas arrecadatórias dos estados e municípios em razão da desoneração das exportações de commodities causada pela Lei Kandir. Na realidade, o Congresso Nacional foi instado a cumprir seu dever de legislar e deve atender ao resultado da decisão unânime de 30 de setembro de 2016 do Supremo Tribunal Federal proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 25.
Efetivamente, na ADO 25, o STF determinou que o Congresso Nacional não poderia mais se manter omisso. Mais do que isso, no julgado, o STF prestou uma reverência ao princípio federativo (cláusula pétrea da Constituição) e condenou veementemente a centralização nociva de receitas tributárias operada pela União, após a CRFB/88. Enfim, o julgador deixou marcado que é preciso garantir o equilíbrio do pacto federativo e romper com a tendência centralizadora da União, bem como compensar os estados e municípios em sintonia com o princípio federativo.
Entretanto, o relatório apresentado, em direção absolutamente contrária à linha condutora do julgado, em texto recheado de contradições, promove ainda mais centralismo e torna mais aguda a ofensa ao pacto federativo. O texto proposto mais parece uma cirurgia de transplante que, para aumentar a produção de leite, coloca um rabo de touro no lugar das tetas de uma vaca: incômodo, inadequado e inútil. O texto afirma que “sobram razões para duvidar da capacidade da Corte de Contas para atender adequadamente ao disposto no acórdão do STF”, mas apresenta uma proposta desconexa e inconstitucional que, ademais, não observa aos mandamentos do STF expressos no julgado da ADO 25. Enfim, a proposta é desastrosa!
O relatório reconhece que os Estados e Municípios perdem anualmente cerca de 27 bilhões de reais com a desoneração da Lei Kandir, entretanto, propõe uma “mesadinha federal” de 9 bilhões a ser compartilhada por todos os Estados segundo critérios firmados pelo Conselho Nacional e Política Fazendária (CONFAZ). Para fazer frente a essa despesa, o estudo propõe um inadequado tributo incidente sobre a exportação (IE) de minério de 30%! Curiosamente, o relatório reconhece que a “deturpação no sistema de repartição de receitas compromete a saúde das relações federativas”, bem como que “as competências constitucionais dos entes federados ficam esvaziadas pela falta de condições materiais necessárias para que sejam executadas”, entretanto, apresenta uma proposta inútil e que, ao invés de compartilhar as receitas centralizadas na União, como manda o acórdão do STF, retira recursos de Estados já sufocados e os repassa aos demais.
O texto proposto, assim, agrava o quadro deturpado do federalismo brasileiro, em flagrante ofensa ao princípio federativo e, reconhecidamente, mantém perdas arrecadatórias dos estados e municípios com a desoneração da Lei Kandir. Como se não bastasse, a proposta pode ser considerada uma incômoda ofensa aos estados exportadores de recursos minerais, como Minas Gerais e Pará. Em outras palavras, para ajudar os entes menores carentes de recursos que foram centralizados na União, o relatório propõe uma transfusão de sangue tomando a veia de estados e municípios mineradores que agonizam. Um horror!
O relatório, a toda evidência, desconhece as consequências que o tributo proposto pode causar ao setor minerador brasileiro e aos estados e municípios mineradores. Vale destacar, ainda, que o imposto de exportação é um tributo regulatório, que serve, sobretudo, como instrumento extrafiscal de regulação de mercado, razão pela qual escapa do princípio da anterioridade. Nesse compasso, a proposta, além de desastrosa é absolutamente inconstitucional.
Mas de onde se tirou da cartola o número mágico de R$ 9 bilhões? Segundo o relatório, de sugestões que, falaciosamente, pretendem descontar a tributação auferida com a importação das perdas arrecadatórias com a exportação! Explica-se.
A CRFB/88, como ressabido, buscou romper com a tradição centralizadora do país e formatar uma verdadeira federação. Para tanto, o texto constitucional estabeleceu, exaustivamente, as competências e atribuições de cada um dos entes da Federação, bem como as fontes de receitas necessárias para que cada um pudesse cumprir sua missão constitucional. Assim foi firmado o pacto federativo. Originalmente, a CRFB/88 estabelecia que os estados deveriam contar, para fazer frente às suas atribuições, com o ICMS incidente sobre produtos importados, bem como com o imposto incidente sobre os produtos primários e semielaborados que fossem exportados. A Lei Kandir, pilotada pela tecnoburocracia da União, determinou a desoneração das exportações de forma ampla e o incentivo dado ocorreu à custa da arrecadação estadual.
O governo federal tinha duas opções para resolver seu intento, sem ferir o pacto constitucional: alargar a esfera de incidência do imposto (estadual) sobre o consumo, compensando assim as perdas de arrecadação, ou transferir recursos da União para os outros entes federados. A opção veiculada pela Lei Kandir é a de se criar um sistema de entrega de recursos financeiros da União para os estados e municípios. Posteriormente, como consabido, a União alargou a incidência dos impostos sobre o consumo quando criou contribuições (não compartilhadas com os estados) e instituiu um verdadeiro ICMS federal (com o PIS e a Cofins). Curiosamente, se não compensou devidamente os Estados, por outro giro, a União avançou sobre os impostos sobre consumo (da competência estadual).
O que o relatório propõe é que o ICMS sobre as importações sirva para cobrir as perdas com o ICMS que incidia sobre as exportações de produtos primários! Entretanto, no pacto federativo, o ICMS incidente sobre a importação sempre pertenceu aos estados! Em outras palavras, o equilíbrio financeiro do pacto federativo plasmado na CRFB/88 já possibilitava aos estados, para dar cumprimento a sua missão constitucional, contar com o ICMS incidente sobre a importação. De forma assombrosa, portanto, a proposta entende que o tributo que sempre foi dos estados deve servir para compensar as perdas sofridas pelos mesmos estados!
O desastroso relatório reconhece que as perdas acumuladas dos estados e municípios com a Lei Kandir ultrapassam a cifra dos R$ 548 bilhões; da mesma forma, verifica que a “dívida consolidada líquida dos 27 estados” ultrapassou o valor de R$ 650 bilhões. Os índices de correção utilizados estão em absoluta dissonância, uma vez que as perdas dos estados foram apresentadas corrigidas pelo IGP-DI e o valor da dívida dos entes menores pela Selic capitalizada (o maior dos índices envolvidos). Se adotado o mesmo índice, por certo os Estados teriam créditos com a União. O relatório propõe, ainda, que a compensação de R$ 9 bilhões seja corrigida anualmente pelo IPCA (o menor dos índices envolvidos), portanto, no lugar de garantir um justo “acerto de contas”, no jogo de índices, a proposta inverte o quadro de devedores e credores, bem como propõe um índice de correção para as compensações que agrava o quadro de centralização, ofendendo ao princípio federativo.
O relatório literalmente afasta a possibilidade de um “acerto de contas” entre os entes federados. Servil aos comandos da tecnoburocracia financeira da União, o relatório afirma que “não será possível, neste momento, equacionar a demanda histórica dos governos estaduais e municipais”. Cedendo aos comandos do Ministério da Fazenda reconhece a injustiça que comete e se rende com as seguintes palavras: “Não se trata de negar a justiça dessa demanda, amplamente demonstrada, mas apenas um reconhecimento de uma realidade incontornável”.
Como ressabido, o artigo 91 do ADCT da CRFB/88 (alterado pela EC 42/2003) estabeleceu o dever de o Congresso Nacional legislar, deixando claro que efetiva compensação deveria ser estabelecida em lei complementar a ser elaborada e que os repasses na forma dada pela LC 115/2002 deveriam ser temporários e só poderiam perdurar pelo tempo necessário para se elaborar a nova lei. A propósito, a LC 115/2002 estabelece repasses legais tão somente até o exercício de 2006, razão pela qual a mora está determinada de forma incontestável, portanto, a EC 42/2003 firmou um período de no máximo três anos para o Congresso Nacional fazer a nova lei complementar. Não foi por outra razão que, na ADO 25, o STF, à unanimidade, decretou a inconstitucionalidade por omissão, firmando que houve omissão lesiva aos estados e municípios por parte da União.
O relatório aponta um ameaçador risco de os Estados nada receberem e de haver um comprometimento dos repasses anuais se a decisão partir do TCU, como estabelecido no acórdão. As perdas passadas, porém, mesmo durante o período em que a omissão legislativa restou plenamente caracterizada (por não haver lei vigente com previsão de repasses), são expressamente ignoradas. Portanto, o relatório ignora o prejuízo causado por décadas pela União aos estados e municípios com a omissão legislativa. Trocando em miúdos, o relatório esboça um projeto confuso de “cano federativo” da União.
A Comissão conta, porém, com outras propostas razoáveis, constitucionais e que não ignoram a realidade. Basta ver as propostas sólidas e adequadas trazidas pelo Consefaz e pela Febrafite, que propõe uma regulamentação justa e correta da compensação das perdas futuras e o mesmo critério de partilha apresentado pelo relatório, bem como um “acerto de contas” das perdas pretéritas ao longo de 30 ou 40 anos! O que não se admite é que a União continue a encher os seus cofres com os tributos sobre o consumo que criou para si e que não compense devidamente os estados e municípios pelas perdas operadas pela Lei Kandir, como determina a CRFB/88. Da mesma forma é inaceitável que os Estados continuem a pagar mensalmente uma dívida que foi corrigida por índices abusivos (Selic capitalizada), mesmo tendo créditos para com a União. O relatório, assim, ignora propostas sensatas, propõe um “cano” nas dívidas do passado e a manutenção de prejuízos aos estados e municípios para o futuro.
Em síntese, o relatório anuncia uma possível “tungada” nos estados: propõe uma compensação pífia das perdas causada pela LC 87; rejeita o “acerto de contas”; sugere que os Estados mineradores paguem a conta!
O princípio federativo da CRFB/88, consagrado em um contexto de redemocratização do país, é assim ameaçado em seu núcleo fundamental. A proposta do relatório agrava o centralismo financeiro da União; arranha inconstitucionalmente a autonomia financeira e política dos estados; fortalece o poder central, desequilibrando o pacto federativo; é incapaz de fazer com que se cumpram os mandamentos do STF trazidos no acórdão da ADO 25. Ou bem a proposta visou “colocar um bode na sala” e instaurar a discórdia, ou bem desconhece os mandamentos da CRFB/88 e foi incapaz de atender à decisão do STF.
Por certo, os senadores e deputados da Comissão devem rechaçar a ofensiva proposta e abraçar algum projeto mais palatável e justo! O Congresso Nacional deve mesmo ressuscitar a política e fazer com que a poderosa tecnoburocracia financeira da União se curve aos mandamentos da CRFB/88!
Certo, porém, que o relatório abriu a caixa de Pandora da Federação. Que Zeus mantenha a esperança no fundo da caixa!
Onofre Alves Batista Júnior é advogado-geral de Minas Gerais, mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa e doutor em Direito pela UFMG, pós-doutorado em Direito (Democracia e Direitos Humanos) pela Universidade de Coimbra e professor de Direito Público da UFMG.
Fonte: Febrafite
Foto: Febrafite