Somente no Executivo, mais de 860 pedidos de aposentadoria foram encaminhados em outubro
JULIANA BUBLITZ
A debandada de servidores públicos verificada no Rio Grande do Sul — motivada principalmente pelo crescimento de pedidos de aposentadoria após a aprovação da reforma da Previdência — causa reflexos em todos os poderes do Estado. A saída de profissionais de alto nível técnico, com perfil de liderança e considerados referências em suas áreas, já é constatada em setores estratégicos de diferentes órgãos da administração pública, que agora têm o desafio de suprir as lacunas.
Entre os servidores que encaminharam os pedidos de aposentadoria e devem deixar os quadros do Estado estão o superintendente-geral da Assembleia Legislativa, o diretor-administrativo do Tribunal de Contas do Estado (TCE), o chefe de segurança do Tribunal de Justiça (TJ) e o chefe da Delegacia Especializada da Receita Estadual.
O expert em arrecadação
Chefe da Delegacia Especializada da Receita Estadual, Ernany Müller esperou até a última terça-feira (22) — data da votação da reforma da Previdência no Senado — para pedir aposentadoria. Aos 59 anos de idade, com 33 anos de trabalho na Secretaria da Fazenda e quatro no setor privado, Müller atingiu os requisitos para deixar a atividade em janeiro. Só encaminhou os papéis agora por receio de perder direitos e por nutrir dúvidas sobre as mudanças em curso, tanto em âmbito federal quanto estadual. Dependendo do que ocorrer nas próximas semanas, cogita voltar atrás.
— Gosto do que faço e pretendia ficar pelo menos mais quatro anos, mas não quis correr o risco. Não se trata apenas de incorporação de FG (função gratificada), mas também das medidas do pacote estadual, que ainda não são totalmente conhecidas. Agora tenho 30 dias para deixar a poeira baixar e analisar melhor a situação. Conforme for, posso sustar o processo. Muitos colegas estão fazendo o mesmo — diz Müller.
Formado em Direito e Engenharia Civil, com mestrado em Engenharia da Produção e especialização em gestão fazendária, o servidor ocupou cargos de chefia ao longo de 25 anos no Fisco. Desde 2012, lidera a delegacia responsável por fiscalizar os grandes contribuintes do Estado, que respondem por mais de 50% da arrecadação de ICMS, principal tributo estadual.
O diretor administrativo
Conhecido entre os colegas pela dedicação ao trabalho, José Alaor Silveira, 57 anos, se tornou referência no Tribunal de Contas do Estado (TCE), onde atua desde 1994, depois de servir à prefeitura e à Câmara de Taquari. Formado em Direito e especializado em advocacia municipal, Silveira passou por uma dezena de setores na Corte, incumbida de orientar e fiscalizar gestores públicos de 1,2 mil órgãos no Rio Grande do Sul, incluindo governador e prefeitos.
Atuou em áreas como consultoria técnica e centro de jurisprudência, que registra e organiza decisões do TCE para guiar o trabalho e servidores e magistrados. Desde dezembro de 2017, era diretor administrativo da instituição, cargo vital para o funcionamento do tribunal.
Mesmo somando 37 anos de serviço e apto a se aposentar, não pensava em encaminhar a papelada agora. Mudou de ideia quando se convenceu de que poderia ser prejudicado pela reforma da Previdência e pelas propostas do governo Eduardo Leite. Fez o pedido no último dia 17 de outubro e ingressou no quadro de inativos na última terça-feira (22), mas seguirá no trabalho até dezembro.
— Tomei a decisão movido pela ameaça de perda de direitos, mas tenho muito apreço pelo TCE. Decidi ficar como voluntário até o final do ano, para colaborar com a atual gestão e, de alguma maneira, tentar auxiliar na transição — diz.
O chefe da segurança
Até se aposentar, na última terça-feira (22), Dario de Los Angeles, 57 anos, ocupava um cargo estratégico no Tribunal de Justiça do Estado: era um dos chefes da equipe de segurança do Judiciário, responsável pelo prédio II do Foro Central — o “novo foro” de Porto Alegre, inaugurado em 2013.
Por dia, de cinco a sete mil pessoas circulam pelos corredores do edifício de 23 andares, onde há gabinetes, varas, juizados, assessorias, cartórios e salas de audiência. À frente de 42 guardas terceirizados, Los Angeles tinha o desafio de garantir a ordem no ambiente marcado por disputas judiciais.
— É uma área de conflito. O papel da equipe de segurança é ter olho clínico e agir com paciência. Não podemos entrar na briga — sintetiza ele.
Servidor concursado, Los Angeles ingressou no Judiciário em 1984. Atuou como guarda até assumir a função de chefia, há nove anos. Fez uma série de treinamentos: de tiro, condução de autoridades, gerenciamento de crises, defesa pessoal, brigada de incêndio, gestão de pessoas. Aprendeu a lidar com scanners corporais e câmeras de monitoramento. Fez o plano de evacuação do prédio. Agora, terá de se acostumar à nova realidade.
— Saí de forma abrupta, de um dia para outro, assim que a perda de direitos se tornou iminente. Não foi fácil fazer isso, mas estou tranquilo. Acho que cumpri minha missão — conclui.
O superintendente-geral
Com 38 anos de serviço público, a maior parte deles na Assembleia Legislativa, o procurador Marcelo Martinelli, 57 anos, não titubeou: quando ficou sabendo da data inicialmente prevista para a votação final da reforma da Previdência (10 de outubro, que depois passou para 22), acelerou os trâmites da aposentadoria. Deixou o trabalho um dia antes, para evitar perdas.
— Depois de 38 anos de dedicação, ficar discutindo direitos? Passei boa parte da minha vida na Assembleia. A decisão foi difícil, mas, nessas horas, a gente tem de ser prático. Se eu não saísse, teria de trabalhar mais oito anos pela nova regra, até os 65. Também levei em consideração o fim da incorporação de FG (função gratificada) — conta Martinelli.
Advogado de formação e servidor de carreira, ele teve duas passagens pelo Legislativo: no início dos anos 1980 e a partir de 1994, quando se tornou procurador e galgou funções graduadas. Foi procurador-geral e superintendente-legislativo, entre outras atividades. Desde o início do ano, era superintendente-geral da Casa, cargo de prestígio e responsabilidade.
— Eu poderia ficar mais tempo, mas não quis arriscar. Outros fizeram o mesmo. Infelizmente, o Estado está perdendo servidores qualificados, que tinham atribuições importantes e que não chegaram ali de uma hora para outra. Espero que isso leve a alguma reflexão — pondera.