Via Febrafite

Como garantir justiça fiscal em escala global, enfrentar os mecanismos que alimentam a evasão e, ao mesmo tempo, assegurar eficiência e autonomia no nível municipal? Três mesas temáticas realizadas na tarde desta terça-feira (17), durante o 9º Congresso Luso-Brasileiro de Auditores Fiscais, apontaram caminhos para uma das equações centrais da política tributária contemporânea: como tornar os sistemas fiscais mais cooperativos, tecnicamente robustos e socialmente comprometidos.
Mais do que expor diagnósticos conhecidos, os debates deste segundo dia de Congresso buscaram tensionar consensos e avançar sobre pontos críticos: o papel das convenções internacionais na construção de uma governança fiscal global; as fronteiras — e omissões — entre planejamento tributário e fraude; e o desafio de redefinir o papel dos municípios em uma arquitetura tributária cada vez mais complexa.
Convenção da ONU sobre Fiscalidade: o Sul Global no centro do debate
A primeira mesa da tarde abriu espaço para uma discussão estratégica sobre a Convenção da ONU sobre Fiscalidade — uma proposta que pretende redesenhar as bases da cooperação tributária internacional, hoje fortemente influenciada pela OCDE. O debate foi mediado por Donizeth Aparecido Silva, secretário da Fazenda do Tocantins, e reuniu Miguel Angel Mayo (Gestha, Espanha), Miguel Marques Serrão (Diretor do Centro de Estudos Fiscais da AT, Portugal) e Daniel Marques Pinto (também do Centro de Estudos Fiscais da AT).
Miguel Angel Mayo apresentou o contexto político que impulsionou a criação da Convenção: um movimento de países do Sul Global em busca de mais equidade e voz na definição das regras fiscais internacionais. A proposta surge como resposta às críticas sobre o domínio das nações mais ricas nas decisões da OCDE e ganha corpo com a Resolução 78/230 da ONU, aprovada em dezembro de 2023, que estabelece um comitê para redigir os princípios dessa nova cooperação fiscal internacional. Segundo ele, “trata-se de uma inflexão histórica — uma tentativa de construir um modelo mais inclusivo”” mas que ainda tem muitos desafios pela frente.
Miguel Angel Mayo lembrou que a proposta obteve apoio esmagador de mais de 120 países e “apenas 9 se posicionaram contra — entre eles, Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália, Israel, Japão, Coreia do Sul, Argentina e Nova Zelândia”. O resultado, destacou Miguel Ángel, sinaliza um compromisso coletivo em enfrentar desigualdades, conter abusos fiscais e incluir países historicamente marginalizados nas decisões globais.
Já Miguel Marques Serrão trouxe uma visão pragmática dos desafios que a proposta enfrenta. Especialmente no que diz respeito a sobreposição entre as estruturas da ONU e da OCDE, o que exige clareza de papéis. Serrão também mencionou avanços importantes da OCDE, como o sistema de trocas automáticas de informações financeiras já adotado por mais de 100 países. Outro desafio apontando para a consolidação da nova estrutura global de Fiscalidade diz respeito a diferentes caminhos que estão sendo usados para evasão de recursos: como os criptoativos e a movimentação de patrimônio em imóveis, “que exigem mecanismos de troca de dados mais abrangentes” e que ainda não estão completamente estruturados: “Mas já estão sendo trabalhados”.
Fraude fiscal na era digital: tecnologia, ética e ação coordenada
A mesa que discutiu os desafios e as boas práticas no combate à fraude, evasão e elisão fiscal reuniu especialistas de Portugal e Brasil para refletir sobre os novos contornos do problema na era digital e os caminhos para enfrentá-lo com inteligência, cooperação e tecnologia. O painel foi mediado pelo jornalista Luís Rosa, do jornal Observador e da CNN Portugal.
Pedro Marinho Falcão, da Law Academy, trouxe uma abordagem abrangente sobre os desafios da fraude fiscal na economia digital. Segundo ele, a digitalização transformou profundamente as relações entre consumidores e empresas, criando novas brechas para evasão e elisão fiscal. Apresentou casos emblemáticos do Brasil, Polônia e Reino Unido que demonstram como algoritmos, machine learning e big data já são usados para identificar omissões e esquemas de lavagem com criptoativos. No entanto, Falcão advertiu: “o avanço tecnológico precisa ser acompanhado de um debate ético e jurídico robusto”, que enfrente questões como a transparência dos algoritmos, a preservação da presunção de inocência e os limites da interoperabilidade entre administrações fiscais e plataformas privadas.
Luciana Grillo, da Comissão Técnica da Febrafite, destacou os efeitos concretos da fraude fiscal sobre os cofres públicos e a justiça social. “Quando a arrecadação legítima não entra, o Estado busca compensações com aumento de impostos ou corte de serviços”, afirmou. Grillo explicou que a fraude representa uma “vantagem indevida para quem a pratica, compromete a concorrência leal entre empresas e enfraquece o pacto social”. Ao tratar das mudanças previstas com a reforma tributária brasileira, defendeu o split payment como ferramenta estratégica: “Mais do que obrigatoriedade, é fundamental garantir que o mecanismo esteja disponível para quem quiser usá-lo”.
Rui Marques apresentou a Procuradoria Europeia (EPPO) como um novo paradigma no combate à criminalidade financeira. Como primeira instituição supranacional com poderes de investigação penal, a EPPO atua de forma coordenada entre os Estados-membros, com “capacidade sem precedentes para instaurar ações penais contra fraudes que afetam os interesses da União Europeia”. Com sua chamada “visão de helicóptero”, permite investigações conjuntas, troca rápida de informações, congelamento de ativos e, se necessário, pedidos de detenção — um modelo que reforça a ideia de que a cooperação internacional é indispensável no combate às fraudes de grande escala.
Autonomia e desafios da tributação local em Portugal e no Brasil
Na última mesa do segundo dia do 9º Congresso de Auditores Luso-Brasileiro foi dedicada à tributação municipal e mediada por Suzane Roessler (Sinfam-RN). Especialistas de Portugal e do Brasil abordaram a fragilidade da arrecadação local e os obstáculos estruturais que comprometem a autonomia dos municípios. Com perspectivas complementares, a mesa reforçou que a descentralização fiscal exige mais do que transferências: requer poder real de tributar e capacidade técnica para gerir os recursos públicos com eficiência e equidade.
Liliana Pimentel, da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, apresentou dados que demonstram o baixo grau de independência financeira dos municípios portugueses. Apesar do aumento nas transferências do Estado entre 2013 e 2023, 45% das receitas municipais ainda dependem desses repasses. A capacidade de autonomia fiscal está fortemente associada ao tamanho dos municípios — dos 188 municípios de Portugal, apenas 27% possuem independência mais robusta. A especialista também destacou o peso crescente do setor imobiliário na arrecadação local, por meio do IMI e do IMT, e alertou para o aumento de municípios com desequilíbrio fiscal: 33 em 2023, contra 12 em 2022.
Carlos Lobo, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, criticou o que chamou de “modelo de canibalização”, no qual os municípios mais ricos fortalecem sua arrecadação enquanto os menores perdem espaço. Segundo ele, muitas administrações locais preferem repassar o ônus da cobrança à União e resistem a assumir responsabilidades arrecadatórias. “O contrato social está a mudar”, afirmou, defendendo uma nova pactuação institucional que fortaleça as autarquias que são a face do Estado junto ao cidadão. Para Lobo, é necessário remontar toda a estrutura de financiamento local, inclusive com a criação de novos instrumentos de arrecadação como a taxa turística — desde que bem distribuída e não imposta à população residente.
Representando o Brasil, Giovanna Victer, secretária da Fazenda de Salvador (BA), apontou que os municípios brasileiros são responsáveis por apenas 13% da arrecadação nacional, sendo o ISS a principal fonte de receita própria. No entanto, 72% deste imposto é arrecadado por apenas 100 maiores cidades do País (O Brasil tem mais de 5.500 municípios).
A reforma tributária, segundo ela, traz desafios relevantes: o primeiro é a implementação do Comitê Gestor, que deverá representar mais de 5 mil municípios com apenas 27 cadeiras. O segundo é garantir que municípios pequenos e médios tenham incentivos e condições para aderir ao novo sistema. Victer reforçou que “tributar tem custos — financeiros e políticos — e que será preciso construir um modelo que respeite a diversidade fiscal dos entes locais.
Sobre o Congresso
O 9º Congresso Luso-Brasileiro de Auditores Fiscais acontece até 18 de junho na Universidade de Coimbra, em Portugal. O evento reúne representantes do Brasil, de Portugal e de países lusófonos para refletir sobre justiça fiscal, inovação tributária e cooperação internacional. A iniciativa é promovida pela Associação Sindical dos Profissionais da Inspeção Tributária e Aduaneira (APIT), de Portugal; pela Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (FEBRAFITE); pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco Nacional); e pela Law Academy – Escola de Direito e Finanças Públicas, também de Portugal.
O tema central desta edição é “Um sistema tributário global e inclusivo: promotor de justiça social e crescimento econômico sustentável”. A programação segue nesta terça-feira (18) com mesas sobre tributação da renda individual, desafios aduaneiros, economia digital, inteligência artificial e justiça fiscal. A leitura da “Carta de Coimbra” encerra o evento, que também anunciará as cidades-sede das próximas edições do Congresso, em 2026 e 2027.
Mais informações | congressolusobrasileiro.org.br
➡️ Veja o segundo dia do 9º Congresso Luso-Brasileiro de Auditores Fiscais: