FI-LO PORQUE QUI-LO

Compartilhe

Autor: José Diogo

O veterano Delegado Marx, acompanhado de esfuziante dama de nome Helena, jantava em noite de chuva em conhecido restaurante da cidade. Recém levara à boca a primeira garfada de suculento rascatele com braciola, quando tocou o celular. Era o Investigador Souza, seu subordinado. Ofegante, falou : Delegado, ocorreu um suicídio com arma de fogo. O suicida matou-se com tiro na boca. O corpo está junto ao Monumento ao Laçador, perto do aeroporto. Marx não se abalou : Souza, chama o Instituto Médico Legal. Daqui a pouco estarei aí. Afirmativo e operante, respondeu o Investigador.

Marx sorveu gole de vinho tinto, chamou o garçom, pediu a conta e falou para Helena : ossos do ofício. E prosseguiu : pedirei uber para te levar em casa. Assim que puder, estarei em nosso ninho. Chovia fraco. Ligou o carro, acionou o limpador de para-brisa no modo lento. Sintonizou estação FM,  na qual Paulinho da Viola dizia, acompanhado de seu plangente violão : “ Eu não vivo no passado, o passado é que vive em mim “. 

Ao se aproximar do local do suicídio, constatou intensa movimentação : pessoas, veículos com repórteres de rádio e de TV, o carro da perícia. A chuva apertara. Desceu do automóvel e ultrapassou a fita de isolamento. Logo foi reconhecido por esguia repórter de TV, que lhe perguntou : e daí, Delegado Marx, o que lhe parece ? Não respondeu. Dirigiu-se ao pessoal da perícia técnica, fazendo as perguntas de praxe. As provas foram recolhidas e colocadas nos envelopes?  Acercou-se do cadáver caído, nada que lhe fosse estranho, embora experimentasse curiosidade : o que estaria fazendo o suicida nas 12 horas anteriores ?  Em qualquer investigação, especialmente quando houvesse morte, tinha presente lição de antigo mestre na Faculdade de Direito :  “ o tempo que passa é a verdade que foge “. Alertado pelo auxiliar da perícia, deteve-se analisando três documentos : recibo de vultosa quantia em dólares em banco com sede em Nova Iorque, depositante e beneficiário aquele que tomou a vida em suas mãos ; canhoto de passagem aérea, trecho Montevidéu/Porto Alegre, do mesmo dia, 3-C ; bilhete escrito com letras de forma, tremidas, com o texto : “ A natureza deu ao homem duas cabeças, mas sangue insuficiente para circular em ambas  ao mesmo tempo . Fi-lo porque qui-lo. Eu” .

Delegado Marx ficou matutando : em que lugar teria lido o que constava do bilhete ?  Bingo. Havia lido a pensata quanto  às duas cabeças em seleta de ditos atribuídos ao Ministro , Embaixador e Senador Roberto Campos, outrora, alvo das esquerdas tupiniquins enfurecidas dos anos 1960/1970. O fim da mensagem, a maioria sabe o autor : Jânio da Silva Quadros, que foi eleito Vereador, Prefeito, Governador de São Paulo e Presidente da República no espaço de  13 anos ( 1947/1960), sempre em eleições diretas. E que renunciou ao último cargo sete meses depois de empossado.

Insondáveis são os caminhos da mente humana, Marx lembrava e acrescentava : especialmente para quem se propõe a tirar a própria vida. Viu quando o motorista do rabecão manobrou de ré, subiu no canteiro que circundava a estátua do Laçador e a maca entrou no veículo. Olhou o relógio, passava da meia-noite. A chuva amainara. Ah, tão longa é a morte  e tão breve a vida. Sacou do celular e ligou para Helena : acordada ? Aquecendo o ninho, como foi teu pedido,  e com o vinho em temperatura adequada, ela respondeu. Marx acionou o seu carro e na FM sintonizada Zeca Pagodinho atacava : “ Camarão que a onda leva… “ Pensou em Helena e ensaiou o texto de cartão que acompanharia a próxima dúzia de rosas vermelhas que lhe ofertaria : o que há melhor em ti, além das ancas, do colo e da tua boca, é o teu olhar. Mais do que um olhar, uma mirada.

Autor: José Diogo


Compartilhe