Saída da Ford do Brasil traz de volta polêmica quanto à eficácia das políticas de incentivos. MARIANA ALVES/JCRoberta Mello
O anúncio do encerramento das operações da Ford do Brasil reacendeu as discussões em torno das políticas de benefícios tributários para a instalação e manutenção de empresas. A montadora atribuiu à crise gerada pela pandemia o encerramento da produção no País.
Segundo a Ford, a pandemia da Covid-19 “amplia a persistente capacidade ociosa da indústria e a redução das vendas, resultando em anos de perdas significativas”. A decisão deve fechar mais de 5 mil postos de trabalho diretos e agravar o quadro do desemprego no Brasil. A produção de veículos da empresa na América do Sul ficará concentrada na Argentina e no Uruguai.
O motivo alegado diz respeito à estratégia de mercado da companhia. Contudo, rumores e uma declaração do próprio presidente Jair Bolsonaro alimentaram a desconfiança no mercado de que a fabricante de automóveis estaria em busca de incentivos fiscais mais interessantes.
Para a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), a alta carga tributária é um dos fatores que, sem dúvida, dificulta a manutenção da produção industrial no País. “A Fiesp tem alertado sobre a necessidade de se implementar uma agenda que reduza o custo Brasil, melhore o ambiente de negócios e aumente a competitividade dos produtos brasileiros. Isso não é apenas discurso. É a realidade enfrentada pelas empresas”, disse, em nota, a federação.
O vice-presidente técnico do Conselho Federal de Contabilidade (CFC), Idésio Coelho, lembra que os benefícios fiscais são uma política importante para reduzir o custo para investimentos. “No Brasil, os custos para operação, sobretudo no início, são muito altos. Nesse sentido, servem como atrativos para investimentos, muitas vezes, vindos do exterior”, explica.
No entanto, o excesso de intervencionismo cria uma série de problemas para o mercado, como redução de concorrência e dificuldade de retirada dos benefícios, alerta Coelho. “O remédio pode se tornar mais maléfico que o problema inicial”, alerta.
Por isso, os mecanismos de benefício fiscal devem ser pontuais e limitados ao menor período de tempo possível. “Soluções para outros gargalos para o desenvolvimento devem ser trabalhadas em paralelo, como: redução da carga tributária, segurança jurídica e redução da burocracia”, defende o vice-presidente do CFC.
A Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco) entende que o fechamento das fábricas da Ford no Brasil resulta da sequência de péssimas decisões tomadas nos últimos anos, entre elas o descaso com mudanças significativas no sistema tributário. Com graves problemas de natureza fiscal no País, o sistema tributário diminui a aptidão de investidores estrangeiros. A agenda de medidas adotada neste governo para a retoma do crescimento se mostra ineficaz, complementa a Fenafisco.
A federação lembra, ainda, que a Argentina, um dos países em que a montadora decidiu manter a produção e até realizar investimento, aprovou há pouco tempo a criação de um Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF). Com isso, a Argentina, “além de tributar os super-ricos, receberá investimentos de US$ 580 milhões da montadora.
Segundo o último Relatório de Gastos Tributários elaborado pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, divulgado em 30 de abril de 2020, o montante de renúncia de receita chegaria perto de R$ 320,7 bilhões ao longo do ano passado. O valor deve corresponder a aproximadamente 4% do PIB e a 21,12% da receita total do Fisco (arrecadação).
O último demonstrativo dos gastos governamentais indiretos de natureza tributária foi divulgado em 2020, mas é feito com base no ano-calendário 2017, já traçando uma estimativa para os anos seguintes da perda de arrecadação decorrente da concessão de benefícios de natureza tributária (chamados pela Receita Federal de gastos tributários).
O gasto tributário para o ano de 2017 foi estimado em R$ 287,94 bilhões, representando 4,37% do Produto Interno Bruto e 22,64% das receitas administradas pela RFB. Esse valor representou uma elevação nominal de 7,27% em relação ao ano anterior. Ainda de acordo com o documento, as regiões Sudeste e Sul obtiveram as maiores participações dos benefícios, com 52,63% e 15,73% respectivamente.
Saída da Ford reacende debate sobre eficácia dos benefícios fiscais
No Rio Grande do Sul, incentivos giram em torno de R$ 10 bilhões há alguns anos. MOHAMED HASSAN/PIXABAY/DIVULGAÇÃO/JC
A “fuga” da Ford do mercado brasileiro atingiu em cheio os gaúchos que até hoje lembram de quando a montadora desistiu do plano de se instalar no Rio Grande do Sul ao não chegar a um acordo com o Executivo gaúcho. Há mais de 20 anos, essa pauta divide opiniões. De um lado estão aqueles que defendiam a instalação da empresa a qualquer custo. De outro, os defensores de que os incentivos estatais devem ter um limite.
A revisão dos benefícios tributários faz parte do projeto de reforma e modernização tributária em âmbito estadual. Uma análise econômica dos incentivos via ICMS no Rio Grande do Sul aponta que o total de desonerações chega a R$ 10 bilhões ao ano. O cálculo da Secretaria da Fazenda sobre o valor total em incentivos fiscais ao longo de 2020 é bastante semelhante ao apresentado pelo Incentivômetro, ferramenta elaborada pela Associação dos Auditores Fiscais da Receita Estadual (Afisvec/RS) que acompanha quanto é “investido” pelo governo gaúcho na iniciativa privada via incentivos fiscais a cada segundo.
Em seu primeiro ano em funcionamento, o contador verificou que R$ 9,4 bilhões deixaram de ser arrecadados. O valor está acima do verificado em 2019 (R$ 9,1 bilhões) e abaixo de 2018 (R$ 9,6 bilhões).Segundo o estudo da Secretaria da Fazenda (Sefaz/RS), no entanto, aplicando o conceito de “gasto tributário”, ou seja, excluindo as isenções que não reduzem efetivamente a arrecadação, verificou-se que os benefícios fiscais atuais são de aproximadamente R$ 8 bilhões. Estão incluídos nesse montante as isenções e reduções de base de cálculo, os créditos presumidos e as desonerações concedidas para as pequenas e microempresas no âmbito do chamado Simples Nacional e do Simples Gaúcho.
O Fundopem (Fundo Operação Empresa do Estado do Rio Grande do Sul) é considerado o principal programa de atração de investimentos do Estado. É concedido a empresas que gerem empregos e riqueza aos municípios gaúchos.
“Todos os projetos que recebem o Fundopem precisam sistematicamente comprovar investimentos e geração de emprego, que são condicionantes para concessão do benefício”, explica Rodrigo Lorenzoni, secretário do Desenvolvimento Econômico e Turismo, pasta responsável pelo fundo.
Existente há décadas, o programa é considerado muito consolidado, segundo Lorenzoni, justamente porque preza pelo equilíbrio entre a concessão do benefício e o retorno para o Estado. Caso a empresa não faça comprovações periódicas, sua participação no programa pode ser revogada. O secretário afirma que o Fundopem não é uma renúncia fiscal, pois o benefício é concedido por um período e, depois de transcorrido esse prazo, a empresa começa a pagar o ICMS que teve isentado.
O Fundopem inclui mais de 200 empresas instaladas no Estado. Segundo o Monitor de Investimentos do Fundopem, 67% delas são de grande porte e geraram 300 empregos diretos só em 2020 – número bem abaixo dos 631 esperados. O objetivo, agora, é colocar em prática o Fundopem 4.0, em fase de revisão da legislação e digitalização das etapas.
Reduzir o tempo de espera para concessão de incentivo às indústrias, ampliar o atendimento a pequenos e médios empresários, dar mais agilidade e transparência nas informações junto aos órgãos de controle e tornar o processo 100% digital são as principais metas.
Benefícios fiscais acirram desigualdade social entre os gaúchos
A essência dos benefícios fiscais é a atração de negócios e melhoria de vida da população, seja com a geração de empregos ou da redução no custo de produtos e serviços. Contudo, quando esses requisitos não são plenamente alcançados, surge um alerta. Segundo a análise da Sefaz sobre os benefícios no Estado nos últimos 30 anos este é um grande gargalo.
Nos últimos 30 anos, a redução da arrecadação de ICMS em decorrência da ampliação dos benefícios fiscais para os setores econômicos mais tradicionais foi compensada pelo aumento da carga tributária sobre as chamadas blue-chips (combustíveis, energia e comunicações), que hoje respondem por um terço da receita de ICMS.
Alíquotas mais altas sobre as blue-chips pesam no consumo dos mais pobres. Por outro lado, grande parte dos incentivos se destina a bens consumidos principalmente pelas classes mais altas (como automóveis). “Enquanto as blue-chips são tributadas a uma alíquota de até 30%, muitos setores econômicos têm sua carga tributária efetiva reduzida para patamares inferiores a 10%. Isso se explica tanto pelas alíquotas mais baixas aplicadas sobre esses setores, quanto pelos incentivos fiscais de diferentes naturezas”, destaca o estudo.
Segundo o coordenador do Grupo Técnico, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), cedido à Sefaz, Sérgio Wulff Gobetti, há simulações que demonstraram que essa grande diferença de carga tributária, por setor ou por tipo de mercadoria, amplia e não atenua a regressividade do imposto. Isso porque, embora alguns produtos que pesam na cesta de consumo das classes mais baixas tenham baixa carga tributária (como carnes e laticínios), há outros itens e serviços que também pesam no bolso dos mais pobres e são muito tributados (como combustíveis, energia e comunicações).
“Além disso, há produtos não essenciais consumidos quase exclusivamente pelas classes médias e altas, como automóveis, que têm uma carga tributária mais baixa do que a média do ICMS. Dessa forma, segundo as estimativas realizadas, cerca 40% dos benefícios fiscais ao consumidor beneficiam a parcela dos 20% mais ricos”, afirmou. O ICMS custa, em média, 14,7% sobre a renda das famílias mais pobres e apenas 3,4% sobre a renda das famílias mais ricas.
Diante desse quadro, o relatório recomenda uma atitude de cautela diante das decisões sobre os incentivos fiscais. “Não há dúvida de que, do ponto de vista da nação, os benefícios fiscais apresentam elevados custos e efeitos muitas vezes perversos sobre a economia nacional, de modo que o recomendável seja sua eliminação progressiva por meio de uma ampla reforma tributária, que modernize o ICMS e/ou crie um novo IVA nacional”.
Chama atenção, ainda, que o Fisco nacional também parece estar preocupado com esses efeitos dos benefícios. Próximo ao final do ano passado, em 22 de dezembro, a Coordenadoria do Sistema Tributário (Cosit) publicou a Solução de Consulta Cosit 145/2020, que estabelece requisitos e condições para afastar a tributação dos benefícios fiscais de ICMS. A Receita passou a condicionar o afastamento da tributação à comprovação de que os benefícios fiscais de ICMS tenham sido expressamente concedidos pelos Estados como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos.
Fonte: Jornal do Comércio