Essa é uma das premissas que guiam o projeto da Fenafisco (Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital) e Anfip (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil), “Reforma tributária solidária: menos desigualdade, mais Brasil”. As propostas, que analisam todos os atuais tributos e propõem soluções, estão reunidas em um livro e em um manifesto com oito premissas para uma reforma necessária.
O presidente da Fenafisco, Charles Alcantara, esteve em Porto Alegre no mês passado apresentando algumas das principais conclusões dos artigos e saídas para o atual modelo tributário no Brasil. A passagem pela Capital fez parte de um roteiro que passou por todas as capitais do País para tornar o tema mais acessível à população em geral.
Segundo Alcantara, nenhuma proposta de reforma tributária apresentada até hoje muda o problema central do sistema: a sua regressividade. “A proposta de reforma tributária solidária se preocupa muito com equilíbrio fiscal, na medida em que você possa diversificar a receita, indo buscar recursos em segmentos que hoje pagam muito pouco tributo. É preciso que tenhamos mais receita sem aumentar a carga tributária. O Brasil é muito desigual e se a gente não aumentar a capacidade de consumo, a indústria e o comercio vão sofrer com isso. Quanto mais renda na mão melhor para esses setores”, destaca o presidente da federação.
JC Contabilidade – O projeto Reforma tributária solidária: menos desigualdade, mais Brasil é resultado de um trabalho longo. Quando vocês começaram a elaborar e por quê?
Charles Alcantara – Estamos desde maio de 2017 dedicando nosso tempo à elaboração desse diagnóstico do modelo tributário brasileiro e a apontar as políticas para um novo modelo. Na nossa interpretação, o maior problema do sistema tributário brasileiro, o mais grave, a principal anomalia, tem a ver com a regressividade exacerbada. Ou seja, os tributos no Brasil incidem muito mais pesadamente sobre o consumo e muito menos na tributação direta.
Contabilidade – Isto acaba penalizando as camadas mais pobres e média da população?
Alcantara – Sim, mas não é só isso. Por optar pela tributação mais forte no consumo, o Brasil está na contramão de todos os países ricos. Não há nenhum país que tenha se desenvolvido ou promovido uma condição um pouco mais digna de vida para os seus cidadãos que tenha prescindido de uma tributação mais incidente na renda e no patrimônio e menos no consumo. Não é só por uma questão de justiça e nós temos frisado muito isso. Quando se tributa muito no consumo se onera muito mais as rendas médias e baixas. No Brasil, quem mais sofre com esse modelo tributário é a classe média, principalmente a assalariada, e os mais pobres, por que esses gastam muito mais da sua renda no consumo de bens e serviços. Eles são os mais penalizados, mas isso também é um problema grave do ponto de vista econômico.
Contabilidade – Como esse modelo prejudica a cadeia produtiva?
Alcantara – O modelo tributário brasileiro é o que chamamos de anticrescimento, pois eleva o custo Brasil, encarece o preço das mercadorias e, com isso, se cria um ciclo vicioso. A proposta da Reforma tributária solidária passa pela redução da tributação no consumo, mas estamos tratando de redução real. Para se ter uma ideia, 49,7% da carga tributária brasileira é sobre o consumo. É preciso reduzir substantivamente essa tributação sobre o consumo e também repensá-la – tributando mais as altas rendas. O Brasil cobra um imposto de renda muito baixo em comparação com outros países e impostos sobre consumo muito altos em relação aos países mais desenvolvidos.
Contabilidade – Uma reforma tributária mexe em questões bastante estruturais e não deve acontecer da noite para o dia. Quanto tempo isso deve levar para acontecer? Vocês indicam uma forma de fazer a transição de forma saudável?
Alcantara – Nós temos absoluta consciência disso e que é uma coisa bastante indigesta. É um processo que precisa, sim, de negociação política, mas devemos enfrentar. Nós não temos ainda um tempo para fazer essa mudança. Só em julho nós vamos formular uma proposta, fazendo simulações inclusive, para sabermos em que medida queremos ampliar a tributação sobre a renda e o patrimônio. Iremos formular em julho para que tenhamos até 15 de agosto o documento com as propostas, simulação, impacto na economia.
Contabilidade – O formato de cobrança do imposto de renda também é bastante desigual. Há a questão da defasagem na tabela de cobrança e o material do Reforma tributária solidária afirma que a isenção de imposto de renda chega a 70% para quem ganha acima de R$ 228 mil por mês. Como encarar isso?
Alcantara – Ao não atualizar a tabela do imposto de renda, o governo teve um aumento de tributação sobre as faixas mais baixas de renda. Por exemplo, hoje, a tabela do imposto de renda acumula uma defasagem de 88,5%. Hoje, quem ganha mais de R$ 2 mil por mês já paga imposto de renda. E quem ganha R$ 4 mil ou mais já paga a alíquota teto de 7,5%. Se tivesse havido a atualização, quem ganha até mais ou menos R$ 3,5 mil mensais estaria isento do imposto de renda. Só estaria na última faixa quem ganha mais de R$ 8 mil. Então veja como o governo foi aumentando sobre as classes mais baixas. Além disso, tem a questão dos lucros e dividendos. O Brasil, em 1995, por intermédio da Lei nº 9.249, resolveu isentar de imposto de renda quem aufere lucros e dividendos, ou seja, sócios de empresas que recebem verba e a remuneração do seu capital em forma de lucros e dividendos estão isentos de imposto de renda. Então você convive hoje com uma realidade absolutamente inaceitável. Um trabalhador que recebe R$ 10 mil paga imposto de renda. Já o sócio de uma empresa que recebe R$ 100 mil em lucros e dividendos está isento. Isso é uma anomalia muito grave que precisa ser enfrentada.
Contabilidade – A tributação de lucros e dividendos pode gerar um importante aumento na arrecadação?
Alcantara – As estimativas mais modestas apontam que tributando lucros e dividendos, que são as altas rendas do capital, teríamos uma receita de mais de R$ 80 bilhões. Esse valor é duas vezes o que o governo federal afirma que ia economizar através da reforma da previdência. Só Brasil e Estônia não tributam lucros e dividendos. Todos os países desenvolvidos capitalistas tributam essa renda.
Contabilidade – Vi também que entre as propostas está a simplificação sem deixar de lado o financiamento de políticas do bem estar social. Como a destinação dos tributos pode ser mais clara?
Alcantara – Isso parte de uma premissa singela e eu sempre costumo fazer essa pergunta aos interlocutores que é: para que servem os tributos? Qual deve ser a destinação de um tributo e do conjunto deles? O que a sociedade espera receber de volta? A principal queixa no Brasil é a falta de recursos dos impostos. As pessoas querem serviços públicos de qualidade, saúde, educação, transporte público de qualidade. Todos os países da Europa conquistaram isso. No pós-guerra, os países mais modernos construíram uma infraestrutura urbana e social de qualidade e isso foi financiado tributando as pessoas na proporção da sua renda, da sua riqueza. A gente está enfatizando algo que parece óbvio mas não é tanto assim. Não podemos aceitar que 50% da população brasileira não tenha acesso a serviço de esgoto. Uma economia que está entre as 10 maiores do mundo não pode deixar que 40% da população não tem acesso ao serviço de abastecimento de água.
Contabilidade – E a ideia é apresentar o estudo aos candidatos às eleições deste ano e fazê-los se comprometes com a reforma tributária?
Alcantara – Em agosto vamos apresentar um outro documento, desta vez não tão denso, e com propostas para o debate. Este pretendemos entregar aos candidatos à presidência da República.
Fonte: Jornal do Comércio