Por Rodrigo Spada , Maria Aparecida Meloni e Jefferson Valentin
A falta de um plano nacional de desenvolvimento contribui para a crise fiscal dos estados na medida em que os convida a buscar a promoção do desenvolvimento regional por meio da desoneração de seus impostos, a chamada guerra fiscal
Aquela que já foi chamada de “mãe de todas as reformas”, a Reforma Tributária, parece figurar atualmente como vítima de um matricídio promovido por parte do Congresso Nacional, com forte apoio do governo federal e sob o silêncio sepulcral da maioria dos estados.
A crise fiscal é generalizada, se arrasta desde a recessão iniciada em 2014 e tem se agravado em função da crise sanitária atual. Dentre os entes federativos, no entanto, os estados são os mais afetados. Alguns colapsaram, outros estão em vias de colapsar e alguns ainda têm um governo aparentemente mergulhado numa quixotesca visão de que conseguirão sobreviver por mais um tempo (pelo menos até o término do mandato).
A razão da crise está na estrutura tributária. A arrecadação disponível dos estados, que na década de 1960 chegou a representar 31,3% do total, em 2013 representava 24,3%. Os motivos são muitos, em especial a desindustrialização, mas há ainda uma forte responsabilidade da União e dos próprios estados nessa crise.
A desoneração das exportações, promovida para equilibrar a balança comercial, foi feita sob a promessa não cumprida de um ressarcimento (Lei Kandir) que nunca veio. A União, ainda, enquanto aumentava a carga tributária nacional por meio da instituição de contribuições sociais (PIS, Cofins, CSLL), cujas receitas não precisam ser divididas com estados e municípios, passou a promover desonerações do IR e do IPI, impostos cuja arrecadação é dividida. Em 1995, por exemplo, isentou do IR a distribuição de lucros e dividendos. A partir de 2008, houve diversos episódios de desoneração do IPI para, supostamente, incentivar determinados setores econômicos, como automotivo e linha branca de eletrodomésticos.
A criação do Simples Nacional, abrangendo um limite de faturamento e de atividades extremamente amplos para os parâmetros mundiais, e com redução substancial tanto da tributação do ICMS quanto do IR e IPI, também reduziu a disponibilidade financeira dos estados.
A falta de um plano nacional de desenvolvimento, induzido pela União, contribui para a crise fiscal dos estados na medida em que os convida a buscar a promoção do desenvolvimento regional por meio da desoneração de seus impostos, a chamada guerra fiscal.
É claro que, nesse ponto, os estados não são apenas vítimas, pois mergulharam fundo na guerra fiscal, promovendo desonerações, muitas vezes irresponsáveis, que além de impactar seus orçamentos, geram ineficiência alocativa e concorrência desleal, ferindo de morte a competitividade da economia nacional.
Os privilégios fiscais, aliás, sempre concedidos sob o argumento da promoção do desenvolvimento, geração de emprego e renda, graças à absoluta falta de transparência acobertam, na verdade, todo o tipo de motivação, muitas delas nem um pouco republicanas.
Apenas uma Reforma Tributária ampla seria capaz de promover a reestruturação orçamentária dos estados ao colocar fim à guerra fiscal e teria capacidade de promover a melhoria do ambiente de negócios e tornar possível a recuperação da economia. A recuperação econômica, por sua vez, resulta em aumento de receitas. Tal reforma parecia encaminhada no Congresso até a decisão do presidente da Câmara, alinhado ao Planalto, de “fatiar” a Reforma Tributária. Leia-se “fatiar” como promover ajustes na tributação da União, avançando ainda mais sobre a base tributária estadual por meio de contribuições e deixando os estados sem nenhuma perspectiva de solução.
Para completar, o governo federal oferece como alternativa aos estados, o Regime de Recuperação Fiscal (RRF) que, em resumo, impõe uma reforma administrativa nos termos definidos pela União, submete as administrações estaduais à Secretaria do Tesouro Nacional e à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional numa espécie de intervenção exercida pelo Conselho de Supervisão do Regime, e exige a entrega, como contrapartida, de toda a arrecadação própria em troca de suspensão temporária de pagamento das dívidas dos estados com a União, sem qualquer tipo de anistia, e a autorização para tomar novos empréstimos.
O corpo técnico dos Fiscos Estaduais, por meio de suas entidades representativas, assim como os secretários de Fazenda dos Estados têm mantido posição de defesa de uma reforma tributária ampla, que traga progressividade à matriz tributária brasileira, com foco na reestruturação da tributação sobre o consumo, que se apresenta como o principal problema atual. Enquanto, por outro lado, os governadores, salvo raras exceções, entre as quais podemos citar ações do Consórcio Nordeste, têm adotado uma postura de absoluta indiferença, quando não de conformismo ou até mesmo subserviência diante da ofensiva do governo federal e sua disposição para enterrar uma reforma que seria fundamental para o reequilíbrio do pacto federativo.
É reprovável a conduta de alguns governadores que têm preferido a adoção de medidas meramente protelatórias da crise, como o RRF, que submete os estados a uma posição subserviente à indisfarçável intervenção federal em troca de uma suspensão temporária da dívida que alivia seus mandatos, mas condena o Estado à insolvência no médio prazo.
É preciso que os governadores assumam a defesa do pacto federativo e os interesses do povo dos estados que os elegeram, que atuem na articulação política em prol de uma Reforma Tributária ampla capaz de induzir o crescimento econômico, e se coloquem na posição de líderes maiores de seus Estados e não meros postulantes a cargos federais e de síndicos de massa falida.
Rodrigo Spada, presidente da Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite).
Maria Aparecida Meloni, presidente da Associação dos Funcionários Fiscais do Estado de Minas Gerais.
Jefferson Valentin, agente fiscal de Rendas do Estado de São Paulo.
Artigo publicado pela Febrafite no Le Monde Diplomatique Brasil