Por IVY FARIAS | Jota
“O setor de combustíveis é um dos que mais sofre com a sonegação de ICMS no Brasil. Avaliamos uma perda de R$4,8 bilhões”. É assim que o presidente da Associação Nacional das Distribuidoras de Combustíveis, Lubrificantes, Logística e Conveniência (PLURAL), Leonardo Gadotti, avalia a razão de o projeto de lei do Senado 423/2017, que aumenta as penas para crimes contra a ordem tributária, ter sido recebido como uma boa-nova.
“O que avaliamos de mais grave é que o fato de sonegar não tira ninguém do mercado. Então, a pessoa sonega e paga uma multa, mas continua trabalhando. Isso é terrível, pois muitas empresas vivem deste expediente”, esclarece Gadotti.
O texto foi proposto pela Comissão Parlamentar de Inquérito da Previdência(CPIPREV) em outubro de 2017 e está sob a relatoria do senador Antonio Carlos Valadares (PSB/SE) desde maio deste ano .
O projeto estipula pena de dois a 12 anos para o crime de sonegação previsto no artigo 1º da Lei 8137/90, além de ampliar a detenção para os crimes dispostos no artigo 2º da lei, como fazer declaração falsa de bens.
A proposta também acresce aos crimes de apropriação indébita previdenciária e sonegação previdenciária – art. 168 e art. 337-A do Código Penal, respectivamente – a pena de reclusão de dois a 12 anos. As penas para esses crimes, hoje, não ultrapassam cinco anos de detenção.
Além da privação da liberdade, o projeto prevê que a nova lei vai “eliminar, no caso de pagamento do tributo devido, a possibilidade de extinção de punibilidade dos crimes contra a ordem tributária”, além de “criar causas de redução de pena”.
Entre essas causas, a nova redação cria o artigo 2-A na Lei 8.137/90 para regulamentar a redução de pena no caso do pagamento do crédito tributário.
Fica estabelecido, por exemplo, que a pena será reduzida à metade se o pagamento integral do crédito tributário ocorrer antes do recebimento da denúncia criminal. Já se o pagamento for feito após a sentença condenatória de primeira instância e antes do trânsito em julgado, a pena será reduzida em um quarto.
“A sonegação se transformou em uma atividade de risco calculado, porque o sonegador sabe que o máximo que pode acontecer é ter que pagar. Pagou, resolveu”, afirma Kleber Cabral, auditor fiscal da Receita Federal e presidente da Associação Nacional dos Auditores da Receita Federal (Unafisco Nacional).
Segundo ele, a lei brasileira permite que os crimes contra a ordem tributária sejam plenamente extintos com o pagamento dos tributos e multas devidos. “Não é preciso nem pagar, basta aderir a um Refis [programa de refinanciamento de dívidas], parcelar, e não haverá reflexo penal”, aponta.
Em seus cálculos, a sonegação corresponde a uma perda anual de R$ 500 bilhões. Em comparação, algumas estimativas dão conta de que o custo da corrupção seja de R$200 bilhões anuais.
“A leniência da lei é um dos fatores de estímulo à sonegação e tem dificultado muito o empenho dos auditores fiscais da Receita Federal no combate à sonegação”, pontua Cabral.
Em nota técnica, a Unafisco ressaltou que projeto de lei atinge somente os “agentes que praticaram condutas descritas como crime e que, portanto, têm como elemento subjetivo o dolo”. Dessa maneira, não se aplicaria ao contribuinte que comete um mero erro no cumprimento de suas obrigações tributárias, sem a intenção de sonegar tributos.
“A apuração definitiva da existência de dolo em determinada conduta é sempre realizada no âmbito do Poder Judiciário, assim como ocorre com os demais crimes previstos na legislação brasileira”, destaca a entidade.
No estudo, a Unafisco comparou as legislações de diversos países em relação ao tratamento penal a sonegadores. Nos Estados Unidos, por exemplo, dados da IRS (Receita Federal americana) sobre investigações criminais relacionadas aos crimes fiscais mostram que, no ano fiscal de 2016, 79,9% dos infratores sentenciados foram condenados a penas de encarceramento, sendo o tempo médio das penas de 38 meses.
Quem compartilha da mesma opinião é Gadotti, da Plural. Ambos ressaltam que o projeto, se aprovado, será positivo para o país.
O presidente da Unafisco destaca que “há um estímulo ao pagamento, com previsão de redução da pena, mas não a extinção”. Já o presidente da Plural observa que a sonegação faz parte de “um sistema extremamente injusto”.
“O montante sonegado deveria ser revertido a hospitais e escolas. Quem faz isso é perverso e deve, sim, pagar com a perda de sua liberdade pelo que deixou de pagar para a sociedade quando sonegou”, afirma Gadotti.
Prioridades invertidas
Nem todos são tão enfáticos na defesa do projeto. Para o advogado tributarista e mestre em Direito, Eduardo Amorim de Lima, a proposta parece “inverter as prioridades”. Para ele, a questão está na complexidade do sistema tributário.
“Falar em mais um tipo penal é não querer combater a origem do problema, que é estrutural”, explica. Segundo ele, o enfrentamento deveria ser “visceral de desoneração nas três esferas”.
Hoje, quem deve impostos hoje no Brasil tem a pena reduzida conforme a etapa em que se encontra o processo administrativo no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), instância máxima administrativa dentro da Receita Federal para contestar débitos tributários. Atualmente, a lei expressa que quem paga o débito pode obter um desconto (até um terço do valor devido).
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) estabelece que a extinção da punibilidade dos crimes contra a ordem tributária ocorre com o pagamento integral do tributo devido a qualquer tempo. Uma vez quite com o erário, o contribuinte não tem mais qualquer relação criminosa. O projeto no Senado prevê justamente não extinguir essa punibilidade.
Lima destaca que um projeto adequado deveria também contemplar os novos tempos, como a tributação sobre produtos e serviços online, por exemplo.
Na exposição de motivos do PL 423/17, está exposto que a previsão prevê de um aumento nas penas para aqueles que praticam crimes contra a ordem tributária objetiva equilibrar a punição e gravidade do delito e eliminar a possibilidade de extinção da punibilidade com o pagamento do tributo. “Estamos certos que tais iniciativas inibirão a prática das condutas criminosas”, diz o texto.
Em outro trecho, ressaltam que o tempo previsto para reclusão foi definido tendo como base as do crime de corrupção:
“No tocante à dosimetria da pena proposta no Projeto, adotou-se como paradigma a pena do crime de corrupção e a forma qualificada do crime de exação, que estabelecem penas de 2 (dois) a 12 (doze) anos de reclusão. Como é sabido, os crimes de corrupção e sonegação são ilícitos penais de natureza bastante semelhante, verdadeiras irmãs siamesas, e que causam enormes danos ao erário público”.
Para a professora de Direito da Fundação Getúlio Vargas Heloisa Estellita, a função da lei penal é prevenir delitos. Mas o que realmente gera um efeito de prevenção é a certeza da punição.
“Se tem que investir em alguma coisa é execução: em descoberta e punição destes crimes, e não aumento de pena”, avalia Estellita. “Usar o Direito Penal para resolver um problema é quase que uma assunção do fracasso.”
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