Reformas levam a debandada de servidores em funções estratégicas no RS

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Incerteza sobre aplicabilidade de mudanças aprovadas pelo Congresso e iminência de votação de pacote do governo de Eduardo Leite motivam corrida por pedidos de aposentadoria no Estado

Isadora Neumann / Agência RBS
Somente no Executivo, mais de 860 pedidos de aposentadoria foram encaminhados em outubroIsadora Neumann / Agência RBS

Com a aprovação da reforma da Previdência, na última quarta-feira (23), o Estado testemunha a debandada de servidores de alto nível técnico, especializados em gestão e considerados referências em suas áreas. A saída de profissionais com esse perfil, que ocupam postos de liderança e gerência, já é constatada em setores estratégicos de poderes e órgãos, que agora têm o desafio de suprir as lacunas.

Um dos motivos da onda de afastamentos é o fim da incorporação das funções gratificadas (FGs) às aposentadorias. Inicialmente, a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) concluiu que a nova regra valeria de forma automática para todo o funcionalismo. A interpretação alvoroçou funcionários públicos.

Na tentativa de reter os quadros especializados, a PGE recuou e anunciou a decisão de divulgar parecer assegurando o direito adquirido. Até a tarde desta segunda-feira (28), o texto não havia sido publicado e as incertezas persistiam.

Às vésperas da votação da reforma, servidores apreensivos formaram filas nas repartições públicas estaduais para encaminhar seus papéis. Muitos já haviam se antecipado e deixaram as atribuições ao longo das últimas semanas. Embora os números não estejam fechados, a saída de gente gabaritada chamou a atenção. 

AAssembleia Legislativa, por exemplo, perdeu seu superintendente-geral (e outras nove pessoas, em um quadro de 219). O Tribunal de Contas do Estado (TCE) ficou sem o diretor-administrativo. Os dois foram substituídos. 

Será uma reposição difícil e cara, porque essas pessoas continuarão ganhando a mesma coisa, como aposentadas. Além disso, é uma mão de obra extremamente qualificada, que teve investimento pesado do Estado e que está sendo entregue pronta para a iniciativa privada.

TÚLIO MARTINS – vice-presidente do TJ

No Judiciário, servidores com décadas de casa e reconhecida expertise — entre eles um dos chefes da segurança — foram embora entre os dias 21 e 22, em clima de melancolia. O presidente do Tribunal de Justiça, Carlos Eduardo Duro, decidiu acelerar a liberação dos pedidos para acalmar os subordinados, temerosos da perda de direitos. Até a última sexta-feira (25), 68 solicitações haviam sido feitas em 14 dias.

Quanto ao Executivo, o êxodo ainda é contabilizado — em outubro, até a última sexta-feira, 861 pedidos haviam chegado à divisão que centraliza os dados (a média mensal registrada até então é de 500 a 600). Setores-chave do governo, como as secretarias da Fazenda e do Planejamento, figuravam entre as afetadas. Ambas as áreas contam com um grupo de profissionais especializados — com pós-graduação, mestrado e doutorado —, que compõe a nata do serviço público e é responsável por funções vitais ao funcionamento da máquina estatal.

Só na Fazenda, a Associação dos Auditores Fiscais da Receita Estadual (Afisvec) estima a provável saída de pelo menos 30 profissionais nas próximas semanas, entre eles o chefe da Delegacia Especializada, responsável pela arrecadação de ICMS dos grandes contribuintes. Já o Sindicato dos Técnicos Tributários (Afocefe) projeta a partida de cerca de 200 pessoas. Há dúvidas se o recuo da PGE surtirá efeito.

— Os colegas estão pensando a respeito. A meu ver, um parecer não se sobrepõe à Constituição. Creio que o governo deixou o problema acontecer e agora será difícil reverter. O pior é que são pessoas experientes, que não se substitui de imediato com a mesma qualidade — diz o presidente da Afisvec, Marcelo Ramos de Mello.

No caso da Secretaria de Planejamento, o quadro de inativos recebeu experts na elaboração de orçamentos e do plano plurianual (PPA), que estabelece diretrizes, programas e ações a cada quatro anos de governo. A lista é composta, por exemplo, por uma servidora do Departamento de Planejamento (Deplan) com especialização em administração pública contemporânea e mestrado em planejamento urbano e regional. 

O Estado precisa se adaptar a essa situação, pois não há espaço para repor quadros diante da situação financeira que vivemos. É uma realidade que afeta o Rio Grande do Sul e o Brasil.

LEANY LEMOS – secretária de Planejamento

— Seis colegas importantes solicitaram aposentadoria nos últimos dias, sendo que somos 59 na ativa. A maior parte está no Deplan e no Departamento de Orçamento. Não está sendo fácil. Eles farão muita falta — lamenta Luciana Gianluppi, presidente da Associação dos Analistas de Planejamento, Orçamento e Gestão do Estado (Aapog-RS).

Reposição com mesma qualificação é desafio

Vice-presidente do Tribunal de Justiça do Estado, o desembargador Túlio Martins não só lamenta as perdas como reconhece que será complicado repor todas as vagas abertas. 

— É um prejuízo enorme para o poder público. Será uma reposição difícil e cara, porque essas pessoas continuarão ganhando a mesma coisa, como aposentadas. Além disso, é uma mão de obra extremamente qualificada, que teve investimento pesado do Estado e que está sendo entregue pronta para a iniciativa privada. No Judiciário, estamos perdendo um pedaço da nossa cultura e memória. É uma lástima — lamenta Martins.

À frente da Secretaria de Planejamento, Leany Lemos tem dito que a corrida por aposentadorias já era esperada — os números costumam aumentar sempre que há reformas ou mudanças nas carreiras, como propõe o governo Eduardo Leite. Ela também reconhece dificuldades para preencher as lacunas, ainda que nem todos os pedidos de desligamento venham a se efetivar.

Muitos técnicos têm uma expertise que não se adquire do dia para a noite. São pessoas cruciais para elaboração, monitoramento e avaliação de políticas públicas.

MARÍLIA PATTA RAMOS – socióloga e professora da UFRGS

— O Estado precisa se adaptar a essa situação, pois não há espaço para repor quadros diante da situação financeira que vivemos. É uma realidade que afeta o Rio Grande do Sul e o Brasil. As pessoas se aposentam jovens, no auge de sua capacidade produtiva, e não são apenas os colegas, mas a sociedade como um todo paga esse preço — pondera Leany.

O cenário incerto é alvo de preocupação. Professora do curso de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFRGS, a socióloga Marília Patta Ramos lembra que a burocracia qualificada, de alto escalão, é fundamental para o desenvolvimento de Estados e Nações. A perda desses indivíduos, segundo ela, pode causar prejuízos.

— Muitos técnicos têm uma expertise que não se adquire do dia para a noite. São pessoas cruciais para elaboração, monitoramento e avaliação de políticas públicas. Até o momento, o governo não apresentou medidas claras de gestão que assegurem a mesma produtividade com um contingente menor de pessoas. Esse é um grande gargalo que precisa de respostas — avalia Marília.

Conforme Leany, a secretaria vem atuando “em várias frentes para que o Estado tenha uma política efetiva de gestão de pessoas” e prepara “amplo projeto” com apoio do terceiro setor, a ser lançado em 2020. Entre as iniciativas que já estão em andamento, a secretária destaca a reestruturação da Escola de Governo com foco na qualificação de servidores, a parceria com a Fundação Dom Cabral para a formação de lideranças e o programa Qualifica RS, voltado à seleção de pessoas para cargos estratégicos.

Por que servidores com cargos de liderança estão saindo

  • Em geral, servidores mais antigos e experientes que possuem postos de chefia ou de direção recebem funções gratificadas (FGs), que garantem valor extra no salário. 
  • Até agora, bastava ter FG por cinco anos consecutivos ou 10 intercalados para incorporar o valor à aposentadoria. Com a promulgação da reforma da Previdência, em novembro, isso vai acabar.
  • O risco de perdas, mesmo para quem tem direito adquirido, levou servidores com cargos de liderança, que estavam aptos a se aposentar, a fazerem o pedido. 
  • Muitos deles também recebem gratificação de permanência, paga aos servidores aptos a se aposentar considerados essenciais pela chefia. O governo do Estado quer reduzir o valor de 50% para 10% do vencimento básico.

Fonte: Zero Hora


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